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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Imagens do Inconsciente

Parte II -
Texto de Nise da Silveira
Catálogo da Exposição - Museu de Arte Moderna - 1975
Centenártio de C. G. Jung

Para espanto nosso, na produção plástica livre de esquizofrênicos que freqüentavam os ateliers de pintura e de modelagem da seção de terapêutica ocupacional, no Centro Psiquiátrico Pedro Segundo, surgia imagens que não se deixavam conectar diretamente com a problemática individual de seus autores, mas estranhamente transbordavam para temas mitológicos. Esses documentos pertencem ao Museu de Imagens do Inconsciente e alguns dentre eles podem ser vistos na exposição ora apresentada.

Uma série de pinturas mostra a metamorfose de mulher em flor, É réplica do drama de Dafne, mítica exemplificação da condição de filha tão estreitamente fixada à mãe que seus próprios instintos não lograram desenvolver-se permitindo-lhe ir ao encontro do homem. Ela recua, e a mãe dominadora transforma-a em flor. Outra série pintada por sapateiro inculto apresenta surpreendentes analogias com temas do mito de dionysos. Os motivos são mulheres com cabeça de vaca ou dançando, o bode, o sátiro, uvas, velhos barbudos semelhantes ás representações arcaicas daquele deus. Nos desenhos de outro autor aparecem também o sátiro, o cacho de uvas nas mãos de um homem jovem conforme é figurado o dionysos menos antigo.

O mito universal do dragão baleia está aqui representado por três autores. Encontro do navegante com o monstro marinho, fuga diante da baleia voraz, a vivência de ser engolido, de ser levado para o fundo das águas. Não ocorre volta à luz do sol segundo acontece ao herói do mito. O homem é lançado pela baleia num país encantado na profundeza do mar (esquizofrenia).
Povoam o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente os mais estranhos seres místicos e animais fabulosos, muitas vezes difíceis de correlacionar a suas matrizes arquetípicas por se apresentarem em abundância tumultuosa, misturarem-se, condensarem-se entre si.

O inconsciente Junguiano é ilimitado e indeterminado. Daí o aspecto cósmico das imagens arquetípicas assinalado por Jung, suas analogias solares, lunares, estrelares, telúricas.

Nos delírios dos psicóticos e na sua produção plástica são muito comuns os temas de comunicação com os astros. Mergulhados na profundeza do inconsciente, acham-se mergulhados na totalidade universal, onde todas as coisas interligam-se sem descontinuidade. Um exemplo demonstrativo são três pinturas de Engenho de Dentro que representam o Sol provido de um longo tubo. Ressalta a analogia dessas imagens com a alucinação do doente de Jung, referida acima, e com as visões de adeptos de Mitra, nas quais os movimentos do tubo do Sol são a origem do vento. Como único comentário as suas três pinturas, o autor disse: ”o sopro do meu nariz muda qualquer circunstância”. Ele transpõe para o nível cósmico sua problemática individual. Identifica-se ao Sol e seu sopro é o próprio vento capaz de produzir poderosos efeitos.

O visitante que tiver disposições para maravilhar-se encontrará na série de pinturas cósmicas desta exposição ainda muitos outros motivos de perplexidade.

Investigando durante longos anos produtos da atividade inconsciente em sonhos, fantasias, delírios, Jung observou a recorrência constante de certas situações e de certas figuras. Apresentavam-se personificações de componentes psíquicos fundamentais tão típicos que Jung lhe deu nomes: sombra, anima, animus, velho sábio, mãe primordial, jovem divina, herói, criança.

Nas coleções do Museu de Imagens do Inconsciente há numerosísimos exemplos de tais personificações. E nesta exposição muitas delas encontram-se presentes, agrupadas segundo a terminologia Junguiana.

No grupo das animas, impressionam as imagens com aspecto de seres élficos, representantes de um estágio ainda pouco diferenciado do principio feminino. Jung diz que “a anima é o próprio arquétipo da vida” e que “o verde, cor da vida, lhe convém adequadamente”. Tem as faces verdes várias imagens da anima que se configuram em Engenho de Dentro.

Dentre o numeroso grupo das deusas-mãe apenas faremos referência a uma delas. Vale a pena procurar vê-la. É mulher de estrutura enorme, toda branca, repousando os pés sobre segmento do globo terrestre, talvez sobre o mar, e tocando com a cabeça segmento da esfera da Lua. Sustenta nas mãos crescente lunar. O fundo da pintura é a cartolina cinzenta, não pintada, dando idéia do espaço infinito. Solta no espaço destaca-se uma mancha negra onde o autor escreveu: Deus minha mãe. Está imagem dá testemunho da historicidade da psique. Aí vemos erguer-se do fundo do templo a grande deusa arcaica, deusa da terra e deusa do céu. A inscrição sobre a mancha negra não deixa lugar a dúvidas. Trata-se da divindade suprema, Deus-mãe, conceito inteiramente estranho a um homem contemporâneo.
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