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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Nise -14 anos de ausência e de presença eterna


Nise, dia de seu aniversário aos 90 anos (foto inédita - MPF)

Estamos neste fim de mês refletindo nos 14 anos de ausência insubstituível de Nise da Silveira 
(15/02/1905-30/10/1999).
Aproveitaremos para publicar alguns artigos escritos em sua Homenagem e pertinentes à Casa das Palmeiras. Em particular textos de pessoas que trabalharam efetivamente com os clientes na Casa e deram seu testemunho - publicados na revista Quaternio Nº8/2001.

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                                 Imagem da consciência

                                                           Lygia Franklin de Oliveira

          Há uma semana estávamos reunidos na nossa assembleia na Casa das Palmeiras, chamada Clube Caralâmpia. Este é um espaço democrático onde clientes e equipe terapêutica discutem problemas, são feitas críticas, sugestões e deliberações. Um cliente antigo e muito querido, M. A., pediu a palavra. Fez um relato de uma recente experiência que, para outras pessoas, talvez seja plenamente aceitável e “normal”. M. A. concluiu que até mesmo os médicos são preconceituosos em relação ao doente que tem uma história psiquiátrica. Contou-nos que, no ano passado, havia desenvolvido um quadro de pneumonia e procurado tratamento. Este foi prolongado, e M. A. começou a perceber que o médico não levava em consideração o que ele falava, embora o estivesse fazendo com objetividade e coerência. O médico procurava sempre a confirmação ou informações advindas de seus familiares. M. A. sentiu-se profundamente humilhado. Veio compartilhar sua dor conosco, dizendo que esta era a pior de todas. Na sua avaliação, se os próprios médicos não conseguem estabelecer um contato respeitoso com o cliente psiquiátrico, o que dirá o restante da sociedade?
          Nise da Silveira criou a Casa das Palmeiras como “um pequeno território livre” onde os clientes têm liberdade de expressão e encontram uma equipe que, sobretudo, valoriza a sua dignidade, respeita as singularidades e tem credibilidade pelo que cada um traz e sente. Uma equipe que procura construir pontes alicerçadas na sinceridade e no respeito entre si e os clientes. Tudo isso, a terapêutica ocupacional constitui-se o laborioso caminho de volta à reinserção social.
          No mesmo dia em que M. A. contou-nos a sua história, outro cliente, M., explicou-nos que considera o ambiente da Casa das Palmeiras, de uma “inocência exagerada”. Definiu-o assim porque sabe que este mesmo ambiente não existe no mundo do lado de fora - duro e marcado por incompreensões. Mas M. afirmou de maneira convicta que é justamente desta “inocência exagerada” que uma pessoa que mergulho profundamente no seu inconsciente e experienciou todas as amarguras afetivas, sociais e médicas advindas deste mergulho, necessita para se recuperar. As dores e o sofrimento são tão intensos que só uma atmosfera semelhante à Casa das Palmeiras poderá trazê-lo de volta. Segundo M. é essencial que a pessoa recupere a confiança e a segurança através de uma experiência vivida. Esta é a sua única chance de retorno, geralmente constitui-se o oposto oferecido pelo mundo externo, que cada vez mais prioriza a competitividade e o sucesso objetivo.
          Não é difícil reconhecer o grande abismo entre os depoimentos de M. A. e M. e o que acontece na maioria dos serviços de saúde - psiquiátrica ou não. Geralmente o doente é pouco ouvido e não é levado a sério. O próprio sistema de saúde os trata como seres que não têm nada a dizer. Comumente a maior preocupação é mantê-los sob controle e silenciosos. Configuram-se aqui o autoritarismo, a visão reducionista e o preconceito, qualidades tão avessas à ciência.
          Guardo uma linda imagem da Doutora (assim a chamamos carinhosamente na Casa das Palmeiras), como símbolo opositor de tudo aquilo que descrevi através dos depoimentos de M.A e M.: Nise no chão, de joelhos, observando durante horas e horas os trabalhos dos clientes, tentando compreender, decifrar os mistérios ocorridos na alma de pessoas sofridas e quase sempre desqualificadas pela sociedade. Uma mulher numa atitude verdadeiramente religiosa, absorta e totalmente dedicada. Algumas vezes ouvi falar sobre este seu hábito de estudo e percebi que ele era tradutor de sua reverência e reconhecimento pelo manancial de riquezas interiores dos seus clientes. Foi esta atitude que marcou e fez o diferencial de toda a sua obra, possibilitando a recuperação de existências, esperanças e sonhos onde o senso comum é o científico, em princípio se diagnosticam como irrecuperáveis.
          Nise encarnou a síntese que unifica o arguto olhar científico ao gesto humano e amoroso. Vivemos numa época de incrível avanço tecnológico, mas essa síntese ainda não foi conquistada. Dela somos carentes. Falar de Nise é como falar do mar ou das estrelas. Não dá, não cabe, é grande demais. Mas acredito que a imagem de joelhos no chão tenha a força e a beleza capazes de inspirar um número cada vez maior de profissionais de saúde, não como ideologia intangível, mas como uma atitude terapêutica vital e transformadora.

Nota – o negrito é nosso.

Texto de Lygia Franklin de Oliveira, médica na Casa das Palmeiras, por ocasião do falecimento de Nise da Silveira (1905-1999). Homenagem / Quaternio / 2001 – pág. 133. Revista Nº 8 do Grupo de Estudos C. G. Jung. 

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